mnz.pt

As novas Arcas de Noé - uma viagem para o Inferno

À vista mais descuidada este poderia ser um navio de cruzeiro. Não o é. Dedica-se ao transporte de animais vivos, gado para engorda e abate nos países de destino.

É o Ocean Drover com bandeira de Singapura e esteve estes dias atracado no porto de Sines. Este navio tem uma capacidade total de transportar, duma só vez, 75.000 ovelhas ou 18.000 vacas. Dizem ser o que de melhor se faz nesta categoria de carreiras marítimas. Dizem. Neste momento, acabou de zarpar de Sines; ontem foi o Alondra. Também, ontem, saiu o Uranus L do porto de Setúbal. Todos com animais vivos a bordo e todos destinados ao mesmo sítio, Haifa, em Israel.

E então, o que é que isso importa?

Várias coisas até, desde as repercussões éticas de exportação de animais vivos, ambientais, económicas, legais e de saúde pública. Mas vamos por partes.

Desde 2015 que Portugal exporta animais vivos para Israel, e a nível europeu exporta-se, também, para a Argélia, Marrocos e Egipto.

Em termos económicos há, certamente um retorno para o país, ou melhor para algumas empresas, cujo negócio, em 2016 rendeu 157 milhões de euros. Segundo a PATAV - Plataforma Anti-Transporte de Animais Vivos, são apenas seis essas empresas, entre as quais está a Monte Pasto e a Raporal (que integra a Monte Pasto). Curiosamente uma empresa que andou moribunda com dívidas na ordem dos 53 milhões de euros ao BES, e cuja “sorte” mudou quando Israel abriu o seu mercado à importação de gado vivo. O Público tem um bom artigo (Exportação de gado salva Novo Banco de buraco de 53 milhões de euros) sobre esta sorte que bafejou a empresa que se tornou, “em apenas dois anos, na maior fábrica de engorda de animais vivos do país (representa 10% do sector nacional e 1% da produção europeia)”.

Seria interessante avaliar se existem verdadeiros benefícios económicos para o país, uma vez que todo o prejuízo ambiental e de saúde fica do lado de cá, com todo o processo de alimentação, sua compra ou produção – não esquecendo a fertilização química dos solos -, de produção entérica de gases - própria destes animais - , de toda a pegada carbónica associada à actividade de criação de gado ovino e vacum, da degradação de solos devido à sobre-exploração e das monoculturas para alimentação desses animais. Ao chegarem ao país de destino, e após período de quarentena e de engorda, estes serão abatidos, ao que me pergunto, ficamos nós com a grande fatia da pegada ambiental?

Eticamente, este tipo de transporte levanta muitas questões. A PATAV, por exemplo, levou uma petição pública à Assembleia da República pela Abolição do Transporte de Animais Vivos para Países fora da União Europeia, expondo, a violação das leis de bem-estar animal que ocorrem nessas viagens, uma vez que após entrada no navio os animais perdem esses direitos.

São várias as associações europeias, australianas (a Austrália também exporta animais vivos por via marítima) e israelitas que estão contra este tipo de transporte, e recentemente foram obtidas imagens de investigação do interior desses navios, ditos os melhores da sua categoria.

Estes foram alguns dos animais que chegaram esta terça-feira a Setúbal para embarcarem no Uranus L.

O vídeo é do Setúbal Animal Save, um ramo da organização mundial Save Movement “que se foca em realizar vigílias em matadouros, mercados, leilões, portos marítimos, ou qualquer espaço onde animais denominados como de “criação” usados dentro da indústria da agropecuária tenham de passar antes de serem abatidos para consumo humano”.

Sobre as condições a bordo destes navios, a RTP passou há pouco tempo um excelente documentário - A face oculta do Transporte de Animais – que eu recomendo vivamente a sua visualização. Mostra, não só o transporte e condições a bordo do navio, como as rotas, horas e condições que os animais são sujeitos ainda antes de embarcarem, assim como o próprio desembarque, muitas vezes feito de forma pouco “humana”.

Estas são imagens da Animals Australia for a kinder world.

Do lado de lá, em Israel, o movimento Israel Against Live Shipments tem trabalhado activamente na divulgação de conteúdo visual das condições em que chegam os animais – dos que chegam vivos - dos vários pontos do mundo. Sim, porque nem todos chegam vivos.

Quanto aos que chegam, as suas condições não são as melhores. Este é um vídeo disso mesmo, e mostra como chegou o gado português, a bordo do Uranus L, ao porto de Ashdod, em Israel, em fevereiro de 2018. Sujos, magoados, ensanguentados, exaustos. O sofrimento é tão visível na cara desses animais portugueses, talvez por isso os motoristas israelitas sejam tão agressivos em bloquear o acesso dos activistas ao camião que os transporta para os matadouros.

A partir daí as regras são outras, a cultura é outra, e o respeito, o pouco que há pela vida animal, é outro.

É preciso estar ligado ao Facebook para poder ver este vídeo - é recomendado.

E como o destino final é o matadouro, sim, porque estes animais vão para lá para morrerem e morrerem conforme os costumes religiosos do país a que lhes calha a sorte, seja kosher, seja halal, o método é idêntico. Um corte único (teoricamente) na garganta, cortando esófago e traqueia e deixando o sangue a drenar do animal. Assim, sem atordoamento, sem nada. Um golpe frio.

O que está reservado a estes animais não é um destino fácil. Por estas, e por tantas outras razões, esta quinta-feira, na casa-mãe da democracia portuguesa será apresentado:

  1. Petição n.º 436/XIII/3.ª, da iniciativa da Plataforma Anti-Transporte Animais Vivos - Solicitam abolição do transporte de animais vivos por via marítima para Países fora da União Europeia;
  2. Projecto de Resolução n.º 1214/XIII/3.ª (PAN) - Recomenda ao Governo que implemente um regime em que o transporte de animais vivos por via de viagens de longo curso para países terceiros seja permitido apenas em situações excepcionais;
  3. Projecto de Resolução n.º 1215/XIII/3.ª (PAN) - Recomenda ao Governo que não preveja nos programas de apoio à produção pecuária a atribuição de qualquer incentivo público a empresas de produção pecuária que exportem animais vivos para países terceiros;
  4. Projecto de Resolução n.º 1594/XIII/3.ª (PEV) - Limitação e adaptação do transporte de animais vivos;
  5. Projecto de Lei n.º 1051/XIII/4.ª (BE) - Regula o transporte de longo curso de animais vivos

Porque nenhum animal deve passar por este purgatório e para que nenhum animal tenha a sua morte marcada no dia do seu nascimento, considere o veganismo.