The Tarrafal Azores Great Hotel
Sábado, 16 de maio de 2020. São 14h05
– Estou a falar com o senhor Paulo Medeiros?
– Não, com o Moniz.
– Ah, Paulo Moniz?
– Sim.
– Desculpe, Medeiros era o da linha de cima. Fala da Autoridade de Saúde. Está livre, pode ir embora.
Eu sabia o que ele queria dizer com aquele “estar livre”, pois nessa mesma manhã tinha saído a decisão do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, na sequência da providência de habeas corpus sobre a medida de quarentena em unidade hoteleira que a Autoridade de Saúde Regional obrigava a todos os passageiros que chegassem à Região provenientes do exterior. A libertação imediata seria apenas para a pessoa que intentou o pedido em tribunal, mas dita a jurisprudência a sua aplicabilidade a toda a gente que estava em confinamento compulsivo em unidades hoteleiras da Região.
– Ah, obrigado. É para sair já ou devo esperar outra indicação de saúde? Fez-se um breve silêncio.
– Mas o senhor quer ficar fechado aí?
– Não. Quero é saber como devo fazer agora. O Centro de Saúde vai ligar a saber do meu estado de saúde?
Este era o meu 11º dia em hotel dum total de 14. Nessa manhã, o habitual telefonema do Centro de Saúde de Ponta Delgada não tinha acontecido às horas habituais – entre as 09h e as 11h. Todas as pessoas à chegada aos Açores têm acompanhamento telefónico quanto ao seu estado de saúde. As perguntas eram sempre: temperatura e alterações desta; sensação geral; alguma dor de garganta ou alteração/falta de sabor.
– Não. Estou a dizer que pode ir embora. Se tiver família cá pode chamá-los para o irem buscar.
– Quer dizer que já não vão ligar a saber da minha temperatura e se estou bem?
– O senhor está bem?
– Sim, tudo okay.
– Então pronto, pode ir embora.
Telefonei à recepção do hotel a indicar deste contacto por parte da Autoridade de Saúde e a saber se poderia descer. Que sim, e indicasse o número do quarto para acelerar o check-out. Malas feitas, check-out feito e contacto telefónico dado ao polícia no balcão de entrada, a seu pedido.
“Mantenha a etiqueta de higiene e use máscara”, foram as últimas palavras do contacto da Autoridade de Saúde comigo.
Não houve beijos nem abraços, apenas um Olá e entrar no carro que me levaria a casa. Pelo sim pelo não, iria manter a máscara em casa pelo menos até saber o resultado do teste ao COVID-19.
Voltamos atrás. Dois dias antes, 5ª-feira, 14 de maio.
Chamada da recepção às 23h15. Pensei ser a perguntar por mudança de roupa de cama/banho, como tinha sido avisado de que iria ocorrer. Não era.
– A equipa COVID está aqui. É conveniente para si?
Desta vez o silêncio foi meu. Sabia que iria ser testado, mas mais perto do fim da quarentena compulsiva e, certamente, não às 23h.
– Ah, sim, sim. É para fazer o teste, não é?
– Sim, eles estão aqui.
Eram, exactamente, 00h01 já do dia 15 de maio quando me bateram à porta do quarto. Um aparato higiénico-sanitário na forma de 5 pessoas equipadas com plástico e celofane protector.
– Não saia do quarto. Confirme-me o seu nome. E há quanto dias está de quarentena?
Eu olhando o homem, respondo-lhe com uma pergunta: “A equipa vem fazer-me um teste e não sabe há quanto tempo estou de quarentena? Estou cá desde dia 5.”
– Ah, então… dez dias. Por favor, traga aquela cadeira e sente-se aqui à porta, assim, de lado.
Fiz o teste, nariz e garganta, não sem antes me perguntarem novamente pelo nome.
Pergunto, logo após, à enfermeira:
– Já alguém se recusou a fazer o teste?
O olhar, ainda que atrás da viseira, era duma certa estupefacção.
– Não sei. Pergunte ao meu colega (o que me tinha feito as perguntas iniciais). Eu sou apenas enfermeira e já estou a trabalhar desde a manhã. Mas porque pergunta?
– O papel que assinamos ao chegar ao aeroporto era apenas de conhecimento do crime de desobediência civil por não cumprir a quarentena, não fala nada de fazer testes.
As duas pessoas atrás, enfermeiros também, começam a rir. E todos os cinco, higienizados, protegidos e suados do dia inteiro, encaram-me, sentado, de calção e t-shirt, à porta do quarto quatro estrelas que me tinha calhado.
– Mas é advogado? Das leis?
– Não. Apenas queria saber. Toda esta experiência social é novidade. Tinha só curiosidade.
Pois que não sabiam – nem diriam, obviamente. Deu-me boa noite e boa sorte.
– Isto não é tanto uma questão de sorte, sair-me o COVID ou não.
Nova risada e uma boa noite a todos.
Gostaria de salientar que, talvez pelo tardio da hora, do cansaço ou porventura não ser hábito perguntar nada a estes técnicos, a equipa estranhou o tipo de perguntas e comentários que fiz.
Na conferência diária que o director regional de saúde, Tiago Lopes, daria na tarde desse mesmo dia, ficou a saber-se que estes testes, antes do prazo de 14 dias e a horas excepcionais, seriam “na salvaguarda da saúde pública (…) no sentido de precaver alguma situação que possa acontecer e que possa propiciar (…) um término dessa quarentena antes daquilo que está previsto”.
Voltamos a sábado, dia da “libertação”.
16h15.
– Senhor Paulo. Fala do Delegado de Saúde. O seu teste ao COVID deu negativo. Parabéns.
(Parabéns?!?)
– Ah, obrigado.
– Tem alguma questão, está tudo bem?
– Nada. Tudo okay, obrigado.
16h30, nova chamada.
– Senhor Paulo?
– Fala a médica (…) do Centro de Saúde de Ponta Delgada. Já lhe ligaram a dizer o resultado do teste ao COVID?
– Sim, foi mesmo agora.
– E já sabe que pode sair do hotel?
– Sim, já estou em casa.
– Hmm, então pronto. Mantenha os cuidados de higiene, lave as mãos e use máscara.
E aqui findou, aos 11 dias, o meu acompanhamento de saúde que o Governo Regional dos Açores fazia, durante catorze dias, a quem chegava à região.
Nessa mesma tarde, Vasco Cordeiro, presidente do Governo Regional dos Açores aparece em directo na RTP-Açores. Deveras irritado e com o seu semblante carregado, debita um conjunto de medidas, novas, as que deveriam estar em vigor desde o início, para todos os que chegassem aos Açores doravante.
Nessa mesma noite, a primeira pergunta da pivot do Telejornal é sobre a residência de quem colocou o pedido em tribunal - é de lembrar o burburinho nos fóruns sociais sobre a “açorianidade” de quem achou a sua liberdade vedada e que seria um atentado vindo de quem não é açoriano e contra os açorianos. Segue com outra pergunta, envolta num critério de dúvida, numa miscelânea de saúde e justiça, buscando uma resposta de crime e castigo.
Concluindo e comentando.
Ao voltar à minha região eu sabia ao que vinha: teria de cumprir quarentena e reforçar o distanciamento físico por um tempo. Também sabia que ficaria em unidade hoteleira a designar e que seria testado ao novo coronavírus.
Eu também sabia que toda esta obrigação compulsiva de fechar pessoas sem conhecimento de serem portadoras do novo coronavírus não seria a forma mais correcta de gerir tudo isto. Afinal, cá nos Açores como lá no Continente, os direitos, liberdades e garantias não estavam suspensos da nossa Constituição Portuguesa.
Eu acredito que todos os decisores fizeram (e estão a fazer) o melhor que puderam, na medida do possível e na medida do que era esperado deles. E é nesta expectativa, de quem governa, que estava o problema do confinamento compulsivo indiferenciado – o medo dos açorianos.
Orgulhosamente sós, orgulhosamente com medo. Fechem-se as portas, os portos e aeroportos, mas não nos deixem sem comida nem nos deixem ficar com leite e carne a mais.
Acredito que uma liderança deve puxar pelo seu povo, não deixar-se empurrar pelos anseios dos seus 43.266 eleitores que pediam, a todo o custo, não deixar entrar este vírus “de fora”.
Naquele sábado, eu ouvi um presidente, o presidente da minha região, a criar o medo entre as pessoas que chegavam, que chegaram e que já cá estavam. Cito:
“O Governo dos Açores, ressalvado o devido respeito ao Tribunal, discorda desta decisão e considera a mesma errada e perigosa para a saúde e, potencialmente, para a vida dos passageiros que chegam aos Açores, para a saúde e, potencialmente, para a vida das suas famílias e daqueles que com ele contactem, para a saúde e, potencialmente, para a vida de todos os Açorianos, em especial os de São Miguel e da Terceira.”
(Conferência de Imprensa do Presidente do Governo Regional dos Açores a 16 de maio de 2020)
“É c’ma prisioneiros”, dizia o homem, duas filas atrás de mim, no autocarro que nos levou entre o aeroporto de Ponta Delgada e a unidade hoteleira que nos iria receber. Era um comentário ao ver que estávamos a ser escoltados por carro da PSP. Um aparato higiénico-sanitário exigido pelos açorianos.
Mil e outras formas de lidar e gerir esta “experiência social” de quarentena criada pelo “exponencial risco de propagação” do novo coronavírus poderiam ocorrer. Mas só quem está a tomar as decisões, quem lá está, é que sabe.
Mas isso não nos livra, cidadãos participativos, de apontar, comentar, fiscalizar e policiar a acção dos nossos governantes, porque toda a decisão política é passível de crítica e debate, mutação e adaptação, ora não vivêssemos numa democracia! E a governança, independentemente da cor partidária, essa é construída à base da confiança que um povo instruído deposita nos seus líderes. Uma confiança que se negativou.
Gostaria que o meu povo perdesse o medo, voltasse a ter nas veias o basalto negro a correr-lhe e um pouco menos da mesma água de rosas com 24 anos.
O título deste artigo, em nada tende rebaixar a qualidade e o serviço da unidade hoteleira em que fiquei, pois foram exímios.
Às pessoas dessa unidade hoteleira, à sua labuta diária e empenho, à(s) equipa(s) que me testou um reconhecimento especial.
Pudera às leis e aos governos empenharem-se no reconhecimento salarial de quem “manteve as coisas a funcionar”, porque palmas e agradecimentos não trazem comida para o prato.